Vidas negras importam https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br HIstórias, denúncias e referências para quem quer aprender, mudar e se desconstruir Tue, 07 Dec 2021 12:41:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Nossa vivência em forma de arte é nossa arma, diz Karol Conká https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/05/26/nossa-vivencia-em-forma-de-arte-e-nossa-arma-diz-karol-conka/ https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/05/26/nossa-vivencia-em-forma-de-arte-e-nossa-arma-diz-karol-conka/#respond Wed, 26 May 2021 03:08:02 +0000 https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/WhatsApp-Image-2021-05-25-at-16.43.50-300x215.jpeg https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/?p=36 Um ano após morte de George Floyd, convidados para lives na Folha avaliam que apesar de avanços no combate ao racismo ainda há um longo caminho pela frente

 

A cada 23 minutos um jovem negro morre violentamente no Brasil. Essa frase não é nova, mas resume a realidade dos jovens brasileiros. 

Nesta terça (25), data em que há um ano George Floyd, um homem negro, foi assassinado nos EUA por um policial branco, Derek Chauvin, a Folha realizou uma série com quatro lives com o mote Vidas Negras Importam. O objetivo era analisar como o caso Floyd, que ganhou o mundo e gerou protestos concomitantes em quase 50 países, impactou o Brasil, país de luta e resistência negras que só começam a ser reconhecidas pela imprensa na última década.

O primeiro bate-papo, cujo tema foi sistema penitenciário, foi conduzido pelo repórter Jairo Malta. Um dos temas recorrentes quando o assunto é o aprisionamento é a ressocialização das pessoas privadas de liberdade após o cumprimento da pena. 

“Até tem trabalho para fazer lá dentro [da prisão]. Costurar uma bola, fazer um artesanato, mas quando o preso sai, que emprego ele vai ter? Vai costurar bola?”, questiona o rapper Christian de Souza Augusto, conhecido como Afro-X, que participou do debate. 

Cena da live Vidas Negras Importam - Sistema Penitenciário com Jairo Malta, Afro-X e Preto Zezé - Foto: Matheus Moreira
Cena da live Vidas Negras Importam – Sistema Penitenciário com Jairo Malta, Afro-X e Preto Zezé – Foto: Matheus Moreira

Afro-X parte da sua própria experiência no sistema prisional para analisar como a ressocialização nos moldes atuais se traduz na prática.

“Pulam-se os passos para uma sociedade democrática, que é trabalhar os requisitos básicos que estão na nossa Constituição, como direito à moradia, direito a oportunidades e outros requisitos. Quando você não assegura esses direitos, é muito difícil de se falar em ressocialização”, argumentou o rapper. “Se a socialização não funciona, a ressocialização será repleta de iniciativas tímidas, ainda que sejam relevantes”.

A música foi o ombro amigo do rapper durante o encarceramento, ocasião em que nasceu o 509-E. “Prova viva que, mesmo diante de uma estatística, é possível recuperar as pessoas”. 

A dupla com o rapper Dexter foi formada no início dos anos 2000, no presídio do Carandiru, como parte de um movimento que nasceu dentro da prisão para reivindicar os direitos dos detentos e o nome 509-E marca o registro da cela em que estavam presos.

o empresário e presidente da Cufa (Central Única das Favelas), Preto Zezé, que também participou da live, ressalta outro aspecto, este que corre paralelamente ao encarceramento. Para ele, o foco em repressão e policiamento ostensivo por parte dos agentes de segurança pública é um dos motivos pelos quais tantos jovens negros morrem em decorrência de operações policiais.

 “Não são só os criminosos que morrem, o Brasil é um dos países que mais mata policiais também. Todos perdem nessa guerra“, afirma.

A situação é complexa, em especial quando considerado o caráter estrutural do racismo no Brasil, que atinge também a imprensa, por exemplo. 

Para a jornalista, doutora em comunicação e professora universitária Rosane Borges, a cobertura do assassinato de George Floyd pelos jornais brasileiros foi errática. Ela aponta que ao mesmo tempo em que os jornais trataram o caso como consequência de racismo estrutural e policial, também individualizaram as responsabilidades pelo ocorrido. “Ora, a imprensa tem que se decidir, ou é culpa da banda podre [da polícia] ou é consequência do racismo estrutural”, disse. Isso se repete, ainda segundo ela, com os casos brasileiros como o de Beto Freitas, morto por um segurança do supermercado Carrefour em 20 de novembro de 2020, em Porto Alegre. 

Borges participou da segunda live do dia, sobre mídia e comunicação. De acordo com a comunicóloga, não é difícil observar mudanças na atuação dos principais jornais do país, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido.

Na GloboNews, por exemplo, um time de repórteres e apresentadores negros de peso ocupou a tela das televisões brasileiras após críticas do público a um programa em que a pauta era racismo cujo convidados eram todos brancos. Para Borges, apesar da presença negra ter apresentado uma explosão nas semanas que se seguiram a morte de Floyd, o momento passou e a presença negra arrefeceu. 

Diferente da imprensa americana, a brasileira não dá nome às situações que envolvem racismo e pessoas negras, na avaliação de Yasmin Santos, jornalista e editora-assistente do Nexo Jornal. 

“A imprensa americana dá nomes às coisas. A imprensa brasileira usa indicadores sociais como ‘homem negro’ para os EUA, mas e o Brarsil? No mesmo mês da morte de Floyd tivemos João Pedro, que só ganhou destaque depois da morte de Floyd. Nós não temos casos no Brasil? A taxa de letalidade policial no nosso país é muito superior a dos EUA. Em 2019, a polícia brasileira matou 17x mais que a americana.” 

Mas afinal, o que há de diferente na morte de Floyd que causou comoção e levou quase 50 países a registrarem protestos do Black Lives Matter? 

Para Manoel Soares, jornalista, apresentador do É de Casa na TV Globo e cofundador da Cufa (Central Única das Favelas), uma das possibilidades é a brutalidade. “Quando pessoas que estão acreditando na sua humanização veem uma pessoa parecida com elas sendo abatida como um animal, isso gera a comoção que vimos. Não conseguimos respirar junto com Floyd. O sufocamento, a chicotada do meu ancestral, foi passada geneticamente para mim”, disse. 

O apresentador sugere que a morte de Floyd comoveu também tantas pessoas brancas ao redor do mundo porque “quando o branco viu de maneira explicita a crueldade quase instantanea praticada por alguém que parecia com eles [contra um homem negro], o povo branco viu a selvageria que recai sobre nós. Eles olharam para o monstro e viram que se parece com seus tios, avós, irmãos”.

A morte de Floyd parece ter sido um novo estopim para novas mudanças há tanto tempo exigidas pelas populações negras americana e brasileira. No ambito legal, por exemplo, a condenação de Derek Chauvin, ainda sem sentença, pelo assassinato de Floyd pode mudar a maneira como casos similares serão julgados. 

O tema foi assunto da terceira live do dia, sobre sistema judiciário e as semelhanças e diferenças legais entre o Brasil e os EUA. Felipe Freitas, pesquisador do Núcleo de Justiça Racial da FGV, foi o convidado para a conversa.

Cena da live Vidas Negras Importam - Sistema Judiciário com Felipe Freitas - Foto: Matheus Moreira
Cena da live Vidas Negras Importam – Sistema Judiciário com Felipe Freitas – Foto: Matheus Moreira

Para Freitas, uma das diferenças legais mais significativas entre os dois países no que se refere à questão racial é a rapidez com que o caso George Floyd teve um desfecho. “É uma justiça que consegue dar respostas em uma velocidade diferente da que temos no Brasil. E isso faz toda a diferença, pois um direito que tarda tem pouca ou nenhuma efetividade na vida concreta das pessoas”, diz.

A dificuldade de visibilizar as conquistas que o movimento negro consegue na institucionalidade faz com que vejamos com muito mais destaque a Lei George Floyd do que, por exemplo, a mobilização do Jacarezinho após a ocorrência da chacina, segundo o pesquisador.

Além disso, Freitas aponta que falta inteligência e preparo da polícia e sugere que a situação seja contornada pelo melhor aparato legal. 

Em dezembro de 2020, o Conselho Federal da OAB aprovou duas iniciativas importantes para as próximas eleições da entidade: a paridade de gênero e a política de cotas raciais de 30% para pretos e pardos. Segundo Freitas, a iniciativa é relevante, mas há o risco do percentual se transformar em um teto para a presença de negros nesses conselhos.

“As políticas de cotas são sempre uma obrigação e nada mais. A pergunta seguinte que precisa ser feita é: o que as instituições farão com isso? O que a OAB vai fazer para estar a altura das mulheres e homens negros que ingressam e contribuem para o seu aprimoramento?”, conclui Freitas.

Na cultura, negros conquistaram espaço cantando suas realidades em ritmos historicamente relegados às periferias, mas que ganham, graças a internet, novos públicos de norte a sul. 

É o caso do DJ e funkeiro Rennan da Penha, um dos idealizadores do tradicional Baile da Favela, que é mencionado em muitos versos de funk, e que participou da última live do dia, conduzida pelo repórter Amon Borges. Para ele, a música abre portas.

Rennan lembra que a violência é algo pelo que ele passa há anos. “Entra ano e sai ano e nada muda […] Quem é da comunidade sabe que a gente vive em busca da paz”, afirma. “O que aconteceu com George Floyd, da abordagem agressiva, já aconteceu com amigos, aconteceu comigo. Isso só ganhou destaque depois que vimos o que aconteceu com Floyd de forma brutal”, diz o funkeiro.

Cena da live Vidas Negras Importam - Cultura com Amon Borges, Karol Conká e Rennan da Penha - Foto: Matheus Moreira/Folhapress
Cena da live Vidas Negras Importam – Cultura com Amon Borges, Karol Conká e Rennan da Penha – Foto: Matheus Moreira/Folhapress

A rapper Karol Conká diz também acreditar na arte como oportunidade para conquista de espaços por negros. Ambos os cantores, no entanto, ressaltam que, apesar de haver maior presença de negros no cenário artístico, ainda há um longo caminho a ser percorrido. 

“Nossa vivência em forma de arte é nossa arma, por assim dizer. A música, além de abrir portas, ela faz a mente chegar além do que a vista alcança. […] As redes sociais colaboram muito para isso, para ocuparmos esses espaços”, diz Karol Conká. 

“Nós sabemos muito mais sobre os brancos do que eles sabem sobre nós, os negros. Eles tentam nos moldar para aparecer na mídia, para ter empregos”, diz a curitibana. “O nosso jeito negro não cabe nesses lugares e por isso temos que falar sobre isso. Temos vivências que não estão nos livros, não são ensinadas nos colégios”, afirma a rapper, que trabalha em um novo álbum após o confinamento no BBB 21.

Texto: Matheus Moreira, Priscila Camazano, Amon Borges e Jairo Malta

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Jovem negro morre após ser baleado por PM e ter socorro por familiares negado https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/05/13/jovem-negro-morre-apos-ser-baleado-por-pm-e-ter-socorro-por-familiares-negado/ https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/05/13/jovem-negro-morre-apos-ser-baleado-por-pm-e-ter-socorro-por-familiares-negado/#respond Thu, 13 May 2021 23:00:12 +0000 https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Victor-dos-Santos-Lima-1-300x215.jpg https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/?p=13 Cerca de 20 pessoas estavam reunidas entre as vielas 12 e 16 da Favela do Lamartine, em Santo André, no ABC Paulista, na noite em que o ajudante de pedreiro Victor dos Santos Lima, 22, morreu após ser baleado pelo policial militar Bruno Palagano Pereira, 30.

Ana Cristina dos Santos Vitorino, 45, mãe de Victor, disse à Folha que chegou ao local cerca de 15 minutos após o filho ter sido baleado e que nada pôde fazer porque os policiais a impediram de prestar socorro.

Ela afirma também que seu filho permaneceu sangrando por cerca de duas horas até a chegada de uma ambulância do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).

“Eu pedi para ver o meu filho, não deixaram. [O policial] Me respondeu com palavras de baixo calão. Eu abaixei a cabeça. Só pedia para que pelo amor de Deus deixassem eu ver o meu filho. Mataram ele covardemente. Mesmo que ele estivesse errado, não é assim. Estão mentindo. Disseram que foi apenas um tiro, mas no vídeo dá para ver que foi mais”, disse.

Em um vídeo obtido pela família (veja abaixo) é possível ouvir pelo menos dois disparos consecutivos. Mas, no boletim que relata a ocorrência, consta o registro de apenas um disparo no local.

Ana Cristina afirma ainda que o filho deixou o local já sem vida. O boletim de ocorrência, no entanto, indica que Victor teria morrido a caminho do Centro Hospitalar Municipal de Santo André.

Victor era uma das pessoas reunidas que conversavam e ouviam música entre as vielas 12 e 16 quando uma patrulha da Polícia Militar abordou de forma truculenta um jovem de cerca de 19 anos que, segundo testemunhas, tem transtornos mentais e é conhecido na região. Os policiais disseram que o jovem transportava “porção considerável de drogas”.

Os ânimos se exaltaram quando os moradores ouviram de um policial que o jovem abordado seria levado para a represa Billings, que na região é conhecida apenas como “a represa” e como um local de desova de corpos.

De acordo com o depoimento dos PMs, registrado em boletim de ocorrência na madrugada do dia 13 de março, o jovem chegou a ser algemado, mas fugiu após moradores impedirem que ele fosse levado.

Na confusão, ainda segundo versão oficial da PM, um dos policiais, Felipe Matheus de Oliveira da Silva, 25, foi atingido por uma pedra. No vídeo é possível ver o momento e a reação do policial, que usou gás de pimenta para afastar os moradores. Foi durante a confusão que o policial Bruno Palagano disparou contra Victor.

Sobre a droga encontrada com o jovem, a polícia ainda não esclareceu a quantidade e nem se, de fato, ela estava em sua posse.

Uma testemunha, que não quis se identificar, afirmou que os policiais ameaçaram o jovem que tinha transtornos mentais e que os moradores, então, tentaram defendê-lo. O rapaz, segundo pessoas ouvidas pela reportagem, era amigo de infância de Victor. O que teria alarmado o grupo e motivado a reação foi o receio de que o jovem tivesse o mesmo destino de outro morador da região morto em 2019 e cujo corpo teria sido desovado na represa.

Em fevereiro de 2019, o corpo de Lucas Eduardo Martins dos Santos, 14, que morava na Favela do Amor, próxima a Favela do Lamartine, foi encontrado boiando dois dias depois de ter desaparecido, trajando apenas uma cueca e meias. Segundo familiares, na última vez em que foi visto vivo, o adolescente estava sendo abordado por um um grupo de policiais militares.

Para Jaqueline Aparecida Silva Alves Correa, advogada e articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, organização que acompanha o caso de Victor, o boletim de ocorrência contém inconsistências grotescas.

Correa cita, por exemplo, o sumiço da droga que teria sido apreendida antes da confusão. “Se a polícia já havia feito a prisão da primeira pessoa e apreendido uma pochete de drogas, onde foram parar essas drogas? No vídeo, o menino está no chão e quando ele corre não é possível ver nada. Por que as drogas não foram relatadas no boletim de ocorrência?”, questiona.

A Rede é uma organização que une movimentos sociais, profissionais e moradores das periferias de São Paulo na busca por proteção contra violência de estado.

A Folha acompanhou uma manifestação organizada pela Rede de Proteção e junto com a família de Victor. Os presentes pediam a apuração do caso e a responsabilização dos policiais envolvidos. A mãe de Lucas Eduardo estava presente.

Durante a manifestação, pelo menos dez viaturas em carreata deram voltas na praça e seguiram os manifestantes a distância durante todo o trajeto (veja a carreata abaixo).

Victor é mais um jovem negro morto pela polícia. O seu caso, como os demais registros de violência nas periferias do Brasil, começa numa abordagem policial —que possui regras para ser executada.

Outro lado

A reportagem enviou, no dia 17 de abril, oito perguntas à Secretaria de Segurança Pública do governo de João Doria (PSDB), mas não obteve resposta. A pasta foi questionada sobre o paradeiro das drogas apreendidas, por que não há informações sobre as drogas apreendidas no boletim de ocorrência, por que a vítima não foi levada ao hospital pela polícia, se os policiais foram afastados e por que os policiais usaram arma de fogo contra civis desarmados.

​No dia 19 de abril, a pasta disse apenas que um inquérito policial havia sido aberto para investigar o caso.

​”Todas as circunstâncias relativas ao caso são investigadas por meio de inquérito policial instaurado pelo Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP) de Santo André. A equipe da unidade realiza a oitiva de familiares da vítima e testemunhas. A Polícia Militar também apura os fatos por meio de Inquérito Policial Militar (IPM). Diligências estão em andamento visando a elucidação da ocorrência.”

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