Vidas negras importam https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br HIstórias, denúncias e referências para quem quer aprender, mudar e se desconstruir Tue, 07 Dec 2021 12:41:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Narloch distorce trabalho de historiadores para defender negacionismo da escravidão https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/09/30/narloch-distorce-trabalho-de-historiadores-para-defender-negacionismo-da-escravidao/ https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/09/30/narloch-distorce-trabalho-de-historiadores-para-defender-negacionismo-da-escravidao/#respond Thu, 30 Sep 2021 11:45:10 +0000 https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/vidas-negras-30-09-2021-foto-de-Danilo-Verpa_Folhapress-2-300x215.jpg https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/?p=170 O jornalista Leandro Narloch escreve em sua coluna “Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro” que “ativistas” deveriam se insipirar em sinhás pretas usando uma lógica liberal e meritocrática.

O texto sugere que os meus ancestrais, escravizados pelos ancestrais de homens brancos como o próprio Narloch, não conquistaram suas alforrias durante o período escravocrata por não terem trabalhado duro o suficiente para ter dinheiro que pagasse por sua liberdade.

Narloch lembra, com razão, que havia mulheres negras que tinham escravos, mas o faz por meio da exceção à regra.

“Ele pega as exceções, as retira do contexto e reforça a aceestrutura racista. Isso está não só no que ele diz, mas na forma como diz. O problema é ele tirar as exceções do seu lugar de exceções”, diz Ynaê Lopes dos Santos, doutora em história pela USP e especialista em história da escravidão nas Américas.

Ao sugerir que casos de mulheres negras ricas com escravos “certamente não eram raros”, o colunista deslegitima toda a história dos povos negros brasileiros e abre margem, por exemplo, para a supressão de políticas afirmativas sob a luz de uma suposta democracia racial.

“Aonde Narloch quer chegar? Ele quer deslegitimar a luta do movimento negro hoje. No limite, ele quer implodir com a política exitosa de ações afirmativas. Ele quer colocar isso em xeque do ponto de vista da legitimidade. Ele está politizando a leitura do passado para promover o embate com a luta racial hoje”, diz Petrônio Domingues, historiador, professor da UFS (Universidade Federal de Sergipe) e autor de “Protagonismo Negro em São Paulo” (ed. Sesc-SP).

As exceções às quais se apega o colunista confirmam a regra e, não somente, são tiradas de contexto por meio do trabalho de outros pesquisadores.

“Narloch utiliza uma pesquisa minha para a construção de um dos capítulos de seu livro ‘Escravos’. O livro é feito a partir do trabalho de outros pesquisadores, e Narloch seleciona [apenas] histórias que são quase exceções dentro do processo escravista no Brasil, como escravos que tinham escravos”, diz Juliana Farias, doutora em história pela USP, em participação no podcast “Humanas – Pesquisadoras em Rede”.

À Folha, Farias reiterou sua fala no podcast, “é um resumo [do que penso]”.

Professora-adjunta na UNILAB e do Programa de Mestrado em Estudos Africanos, Populações Indígenas e Culturas Negras da UNEB, além de ter pós-doutorado em História da África pela Universidade de Lisboa, Farias critica o uso das suas pesquisas por Narloch que, segundo ela, as tira de contexto “se apropriando de um trabalho de pesquisa para fins ideologicamente orientados”.

Domingues ressalta que as sinhás pretas de fato existiram, mas que não é possível dimensionar a representatividade do grupo. “O que as pesquisas comprovaram é que era um grupo minoritário. É capciosa a narrativa de Narloch porque ele tenta inverter e generalizar”, afirma.

De maneira similar, é possível notar que o trabalho do antropólogo Antonio Risério também é desvirtuado, uma vez que o próprio antropólogo reconhece que as histórias contadas em seu livro não foram suficientes para aplacar as desigualdades sociais brasileiras no período, como aponta a reportagem de João Gabriel Telles para a Ilustrada.

O argumento de que as sinhás pretas enriqueceram e assim superaram o preconceito também carece de evidência que o sustente. “Isso é puro anacronismo. Ele disse que as sinhás pretas ascendiam e eliminavam o preconceito. A mobilidade social não eliminava o preconceito. Isso é mentira”, afirma Domingues.

Manifestantes protestam em frente à Assembleia Legislativa do RJ contra a política de segurança do governo, no Rio de Janeiro. O ato acontece após a menina Ágatha Félix ser morta por uma bala perdida. 23.set.2019 | Foto: Ricardo Borges

Já para Santos, o fato de negros terem tidos escravos não muda a história da escravidão no Brasil. Ao contrário, a reforça. Para a historiadora, Narloch analisa o movimento negro e a escravidão de forma simplista.

“Ele está fazendo isso num espaço de privilégio que ele sabe, conscientemente, que tem. O que ele faz é o uso desonesto das pesquisas científicas feitas por historiadores. Ele reduz o movimento negro ao simplismo porque é a forma como ele consegue enxergar o movimento negro. Narloch faz uso da supremacia branca e tem a ousadia de nesse lugar falar pelo movimento negro”, conclui.

Sempre haverá entre nós, negros ou brancos, aqueles que discordam, que agem de má fé ou que nem sequer se importam o bastante para pensar a respeito de qualquer coisa. Na Folha, já houve avanços na discussão sobre a complexidade dos movimentos negros ao longo da história. Faria bem a Narloch ler o jornal para o qual escreve.

Leia mais sobre a desigualdade racial no Brasil:

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Carrefour divulga projetos de equidade racial e empreendedorismo negro que financiará após morte de Beto Freitas https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/carrefour-divulga-projetos-de-equidade-racial-e-empreendedorismo-negro-que-financiara-apos-morte-de-beto-freitas/ https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/carrefour-divulga-projetos-de-equidade-racial-e-empreendedorismo-negro-que-financiara-apos-morte-de-beto-freitas/#respond Fri, 03 Sep 2021 21:36:59 +0000 https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/a0048bce4ab2191aaac038757f04905a5e6c097cdfb105226fb8e16f8271fff8_5fbac712b55a7-2-300x215.jpg https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/?p=164 O Grupo Carrefour anunciou no dia 26 de agosto os 38 projetos de equidade racial e empreendedorismo negro que apoiará financeiramente durante um ano. O valor que cada projeto receberá varia, podendo chegar a R$ 65 mil.

As iniciativas foram selecionadas entre 1.625 inscritas em três editais, o de apoio para fortalecimento institucional de organizações e/ou coletivos afro-brasileiros da sociedade civil, com 13 projetos, e o de apoio a iniciativas de fomento ao empreendedorismo negro, com 15 projetos, e o de apoio a iniciativas de combate ao racismo e a discriminação, com 10 projetos.

A criação dos editais por meio do projeto Não Vamos Esquecer faz parte dos compromissos públicos assumidos pelo grupo após João Alberto Silveira Freitas, 40, o Beto Freitas, ser espancado e asfixiado por 4 minutos diante de 15 testemunhas por um segurança de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre (RS) no Dia da Consciência Negra, em 2020.

Relembre o caso:

Ao todo, iniciativas de 13 estados foram selecionadas, a maior parte delas em São Paulo (7) e na Bahia (7), seguidas por Rio de Janeiro (5) e Rio Grande do Sul (4). Os demais estados são Maranhão (3), Pernambuco (3), Espirito Santo (2), Minas Gerais (2), Amazonas (1), Ceará (1), Paraíba (1), Piauí (1) e Sergipe (1).

Confira a lista completa das entidades com projetos selecionados:

Edital de Fortalecimento Institucional

Associação Comunitária, Cultural, Educacional e Política Casa do Hip Hop de Piracicaba. (SP)
Associação de Cultura, Arte, Educação e Esporte – Corpo e Mente (ES)
Associação de Pesquisadores Negros da Bahia – APNB (BA)
Associação de Povos Remanescentes de Quilombos de Segredo (BA)
Associação Escola de Samba Afro Cultural Unidos do Pôr Do Sol RS – AFROSOL (RS)
Associação Nacional Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu – ACBANTU (BA)
Centro Cultural Cambinda Estrela (PE)
Comunidade Quilombola Dos Arturos De Contagem (MG)
Filhos de Gandhy (BA)
Instituto Ylúguerê de Educação, Política e Cultura Afro-Brasileira (MA)
Quilombo Maloca (SE)
Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora (RS)
Reciclarte (RJ)

Edital de Fomento ao Empreendedorismo Negro

Associação de Desenvolvimento Comunitário Rural do Assentamento Saco Curtume (PI)
Associação Comunitária de Canto (PB)
Associação Comunitária Cultural Quilombola do Ausente Feliz (MG)
Centro de Assessoria ao Movimento Popular (RJ)
Centro de Arte e Meio Ambiente – CAMA (BA)
Diáspora.Black (SP)
Granapretta – Finanças para Mulheres Negras (SP)
Instituto As Valquírias (SP)
Instituto de Apoio ao Desenvolvimento e Inclusão Social – IADIS (PE)
Instituto de Cultura e Economia Solidária Maria Luiza – Instituto Tia Luiza (PE)
Mostra Itinerante de Cinemas Negros – Mahomed Bamba (BA)
Negras Plurais (RS)
Pappo Consultoria (SP)
Plataforma www.diversidade.io (SP)
PROCOMECE – Projeto de Cultura, Esportes, Educação e Qualificação Profissional (RJ)

Edital de Combate ao Racismo

AFROCHAVES – Associação de Desenvolvimento Sociocultural Afro de Alfredo Chaves (ES)
Associação Comunitária Cantinho Feliz (CE)
Centro de Cultura Negra – Negro Cosme (MA)
Centro de Estudos e Pesquisas Visão de Futuro (MA)
Coletivo Virando a Rua (SP)
Instituto Cultural Afro da Amazônia – Projeto Afro (AM)
Malice Produções Culturais (RJ)
Observatório da Discriminação Racial no Futebol (RS)
Tem Dendê Produções (BA)
Ubuntu Filmes (RJ)

 

 

 

 

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Negros são menos de 5% dos indicados ao Prêmio Comunique-se, o Oscar do jornalismo brasileiro https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/negros-sao-menos-de-5-dos-indicados-ao-premio-comunique-se-o-oscar-do-jornalismo-brasileiro/ https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/negros-sao-menos-de-5-dos-indicados-ao-premio-comunique-se-o-oscar-do-jornalismo-brasileiro/#respond Fri, 25 Jun 2021 23:12:00 +0000 https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/ViewImage-300x215.jpg https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/?p=99 O Prêmio Comunique-se divulgou no último dia 14 de junho os indicados em suas 27 categorias. Dos 214 comunicadores, somente 10 são negros, o equivalente a 4,7%, segundo levantamento feito pela Folha.

A jornalista Flávia Oliveira, colunista do O Globo e da rádio CBN e comentarista na GloboNews, foi a única pessoa negra a ser indicada em mais de uma categoria. Ela concorre nas categorias “mídia escrita” e “mídia falada” de Economia.

Em contrapartida, apenas oito comunicadores não negros somam 27 indicações. Os mais indicados são Natuza Nery (Globo), Nathalia Arcuri (RedeTV) e Guilherme Fiuza (Jovem Pan), com quatro indicações cada.

Dentre os oito mais indicados, cinco integram emissoras ou veículos valorizadas pelo presidente Jair Bolsonaro como Jovem Pan, RedeTV e Record.

Apesar de os vencedores serem escolhidos por votação popular, os indicados são escolhidos pela equipe da empresa Comunique-se S.A. Na prática, se a empresa não indicar um profissional, ele não poderá ser escolhido pelo público de nenhuma outra maneira.

O regulamento da premiação, disponível no site, informa que “os profissionais de comunicação que concorrerão ao Prêmio serão indicados primeiramente pela equipe do Comunique-se, com base nas indicações feitas pelos internautas por meio da votação no Portal Comunique-se e na página do Prêmio Comunique-se“.

O público apenas poderá votar para escolher entre os indicados três finalistas para cada categoria e, posteriormente, os 27 premiados. O resultado da votação é auditado, segundo o regulamento, por uma empresa independente.

Procurada, a Comunique-se não respondeu aos questionamentos até a publicação deste texto.

Entre os mais indicados, em três categorias, está o jornalista Augusto Nunes, que nesta quarta (24) disse em comentário ao vivo na Rádio Jovem Pan que “até a tonalidade da pele” indicaria que o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) mentiu ao falar sobre irregularidades nas negociações de compra da vacina Covaxin contra Covid-19 pelo governo federal.

De acordo com o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Miranda se declarou em 2018 como sendo branco.

“Todos os casos, inclusive essa evidente fraude ensaiada pelo deputado, seu irmão, Renan Calheiros e etc. As imagens que nós mostramos, elas falam. Nessas imagens, o rosto fala, os olhos falam, o tom de voz, o timbre, tudo fala. Até a tonalidade da pele e tal. É evidente que o Onyx, um político muito tarimbado, está falando a verdade”, disse Augusto Nunes.

Pelo comentário em vídeo (veja abaixo), não há como afirmar que a fala teve cunho racista, embora tenha sido interpretada por usuários nas redes sociais dessa maneira.

O jornalista disse à Folha que já no começo do comentário expressou que “o rosto fala, fala com o olhar inseguro, por exemplo. Ou com a boca ressecada. Ou com a tonalidade da pele. Quem mente corre o risco de ficar ruborizado, com a pele avermelhada. Quando me exponho ao sol por muito tempo, meu rosto adquire uma tonalidade bronzeada”.

Para Nunes, “quem vê racismo nesta constatação (sem ficar ruborizado) precisa de psiquiatra”.

Veja algumas das publicações de usuários que demonstraram incômodo e apontaram racismo na fala do jornalista, veja:

A forma como Nunes se expressou, porém, não foi percebido da mesma maneira por todos. Alguns usuários, por exemplo, não viram racismo neste caso:

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Sobre bicicletas e vidas negras roubadas https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/06/20/sobre-bicicletas-e-vidas-negras-roubadas/ https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/06/20/sobre-bicicletas-e-vidas-negras-roubadas/#respond Sun, 20 Jun 2021 15:00:12 +0000 https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/bike--300x215.jpg https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/?p=92 O jornalista Janio de Freitas, a quem leio, publicou na sua coluna um texto do qual discordo fundamentalmente. O racismo, metamorfoseando o clichê de Antoine de Saint-Exupéry, também é invisível aos olhos. No entanto, a pele o sente bem.

Primeiro você não sente nada, é tudo muito rápido. Em seguida, o local fica quente, úmido, o sangue, grosso, deixa seu corpo e tinge a pele preta com o elixir da vida. E então a dor. Isso, evidentemente, se a bala não tiver deslizado pelos cabelos e atravessado o neurocrânio, responsável por proteger o cérebro. Neste caso, talvez não dê tempo de sentir nada.

O racismo é assim. Ele entra em nossos corpos num instante e, às vezes, sentimos a dor e reagimos, noutras vezes, só percebemos quando já é tarde demais.

A maior parte do racismo é essencial e estruturalmente dissimulada. Não é curioso que as balas perdidas sempre encontrem Ágatha, João Pedro, Marcus Vinicius apesar de ninguém ter gritado aos quatros ventos que iria disparar um fuzil contra uma criança negra porque ela era negra? Me pergunto se avisaram a mãe de Lucas, de 14 anos, que sumiu de sua casa e apareceu no IML, que o garoto teve sua vida roubada por ser preto.

O exercício do jornalismo nos obriga a ver por baixo do que é dito e, especialmente, o que não é dito. Usemos os dados que estão à nossa disposição para tentar analisar o entorno de maneira a entender o objeto central da análise.

Um homem negro tem 74% mais chance de ser morto do que um branco, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O levantamento feito pela Folha para a série Inocentes Presos (recomendo a leitura) mostra que, de 100 pessoas presas injustamente, 60 eram negras. Além de deixar evidente que as principais causas para as prisões são, veja só, reconhecimento incorreto (42 casos) e identificação incorreta (25 casos).

Objetivamente: o racismo é um crime cujas provas são de difícil produção porque o delito frequentemente acontece de forma velada e, além de ser velada, encontra em pessoas brancas com influência respaldo para que seja relativizado e sua ocorrência posta em dúvida.

O principal suspeito de roubar a bicicleta, um jovem branco morador de Botafogo conhecido pela polícia por justamente roubar bicicletas, foi solto. Lembra-se de Rafael Braga, preso por portar o perigosíssimo desinfetante Pinho Sol?

Por fim, devo dizer que eu concordo com Janio sobre as demissões do casal. Creio que as duas empresas perderam a excelente oportunidade de educar em vez de punir. Poderiam, por exemplo, contratar pensadores negros para um ciclo de palestras dedicados a todos os seus funcionários, incluindo o casal branco, para que o visto no vídeo e amplamente repercutido não acontecesse novamente por causa de nenhum dos seus colaboradores.

Não há respostas fáceis quando o assunto é racismo, mas podemos, juntos, construir soluções possíveis.

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Nossa vivência em forma de arte é nossa arma, diz Karol Conká https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/05/26/nossa-vivencia-em-forma-de-arte-e-nossa-arma-diz-karol-conka/ https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/2021/05/26/nossa-vivencia-em-forma-de-arte-e-nossa-arma-diz-karol-conka/#respond Wed, 26 May 2021 03:08:02 +0000 https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/WhatsApp-Image-2021-05-25-at-16.43.50-300x215.jpeg https://vidasnegrasimportam.blogfolha.uol.com.br/?p=36 Um ano após morte de George Floyd, convidados para lives na Folha avaliam que apesar de avanços no combate ao racismo ainda há um longo caminho pela frente

 

A cada 23 minutos um jovem negro morre violentamente no Brasil. Essa frase não é nova, mas resume a realidade dos jovens brasileiros. 

Nesta terça (25), data em que há um ano George Floyd, um homem negro, foi assassinado nos EUA por um policial branco, Derek Chauvin, a Folha realizou uma série com quatro lives com o mote Vidas Negras Importam. O objetivo era analisar como o caso Floyd, que ganhou o mundo e gerou protestos concomitantes em quase 50 países, impactou o Brasil, país de luta e resistência negras que só começam a ser reconhecidas pela imprensa na última década.

O primeiro bate-papo, cujo tema foi sistema penitenciário, foi conduzido pelo repórter Jairo Malta. Um dos temas recorrentes quando o assunto é o aprisionamento é a ressocialização das pessoas privadas de liberdade após o cumprimento da pena. 

“Até tem trabalho para fazer lá dentro [da prisão]. Costurar uma bola, fazer um artesanato, mas quando o preso sai, que emprego ele vai ter? Vai costurar bola?”, questiona o rapper Christian de Souza Augusto, conhecido como Afro-X, que participou do debate. 

Cena da live Vidas Negras Importam - Sistema Penitenciário com Jairo Malta, Afro-X e Preto Zezé - Foto: Matheus Moreira
Cena da live Vidas Negras Importam – Sistema Penitenciário com Jairo Malta, Afro-X e Preto Zezé – Foto: Matheus Moreira

Afro-X parte da sua própria experiência no sistema prisional para analisar como a ressocialização nos moldes atuais se traduz na prática.

“Pulam-se os passos para uma sociedade democrática, que é trabalhar os requisitos básicos que estão na nossa Constituição, como direito à moradia, direito a oportunidades e outros requisitos. Quando você não assegura esses direitos, é muito difícil de se falar em ressocialização”, argumentou o rapper. “Se a socialização não funciona, a ressocialização será repleta de iniciativas tímidas, ainda que sejam relevantes”.

A música foi o ombro amigo do rapper durante o encarceramento, ocasião em que nasceu o 509-E. “Prova viva que, mesmo diante de uma estatística, é possível recuperar as pessoas”. 

A dupla com o rapper Dexter foi formada no início dos anos 2000, no presídio do Carandiru, como parte de um movimento que nasceu dentro da prisão para reivindicar os direitos dos detentos e o nome 509-E marca o registro da cela em que estavam presos.

o empresário e presidente da Cufa (Central Única das Favelas), Preto Zezé, que também participou da live, ressalta outro aspecto, este que corre paralelamente ao encarceramento. Para ele, o foco em repressão e policiamento ostensivo por parte dos agentes de segurança pública é um dos motivos pelos quais tantos jovens negros morrem em decorrência de operações policiais.

 “Não são só os criminosos que morrem, o Brasil é um dos países que mais mata policiais também. Todos perdem nessa guerra“, afirma.

A situação é complexa, em especial quando considerado o caráter estrutural do racismo no Brasil, que atinge também a imprensa, por exemplo. 

Para a jornalista, doutora em comunicação e professora universitária Rosane Borges, a cobertura do assassinato de George Floyd pelos jornais brasileiros foi errática. Ela aponta que ao mesmo tempo em que os jornais trataram o caso como consequência de racismo estrutural e policial, também individualizaram as responsabilidades pelo ocorrido. “Ora, a imprensa tem que se decidir, ou é culpa da banda podre [da polícia] ou é consequência do racismo estrutural”, disse. Isso se repete, ainda segundo ela, com os casos brasileiros como o de Beto Freitas, morto por um segurança do supermercado Carrefour em 20 de novembro de 2020, em Porto Alegre. 

Borges participou da segunda live do dia, sobre mídia e comunicação. De acordo com a comunicóloga, não é difícil observar mudanças na atuação dos principais jornais do país, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido.

Na GloboNews, por exemplo, um time de repórteres e apresentadores negros de peso ocupou a tela das televisões brasileiras após críticas do público a um programa em que a pauta era racismo cujo convidados eram todos brancos. Para Borges, apesar da presença negra ter apresentado uma explosão nas semanas que se seguiram a morte de Floyd, o momento passou e a presença negra arrefeceu. 

Diferente da imprensa americana, a brasileira não dá nome às situações que envolvem racismo e pessoas negras, na avaliação de Yasmin Santos, jornalista e editora-assistente do Nexo Jornal. 

“A imprensa americana dá nomes às coisas. A imprensa brasileira usa indicadores sociais como ‘homem negro’ para os EUA, mas e o Brarsil? No mesmo mês da morte de Floyd tivemos João Pedro, que só ganhou destaque depois da morte de Floyd. Nós não temos casos no Brasil? A taxa de letalidade policial no nosso país é muito superior a dos EUA. Em 2019, a polícia brasileira matou 17x mais que a americana.” 

Mas afinal, o que há de diferente na morte de Floyd que causou comoção e levou quase 50 países a registrarem protestos do Black Lives Matter? 

Para Manoel Soares, jornalista, apresentador do É de Casa na TV Globo e cofundador da Cufa (Central Única das Favelas), uma das possibilidades é a brutalidade. “Quando pessoas que estão acreditando na sua humanização veem uma pessoa parecida com elas sendo abatida como um animal, isso gera a comoção que vimos. Não conseguimos respirar junto com Floyd. O sufocamento, a chicotada do meu ancestral, foi passada geneticamente para mim”, disse. 

O apresentador sugere que a morte de Floyd comoveu também tantas pessoas brancas ao redor do mundo porque “quando o branco viu de maneira explicita a crueldade quase instantanea praticada por alguém que parecia com eles [contra um homem negro], o povo branco viu a selvageria que recai sobre nós. Eles olharam para o monstro e viram que se parece com seus tios, avós, irmãos”.

A morte de Floyd parece ter sido um novo estopim para novas mudanças há tanto tempo exigidas pelas populações negras americana e brasileira. No ambito legal, por exemplo, a condenação de Derek Chauvin, ainda sem sentença, pelo assassinato de Floyd pode mudar a maneira como casos similares serão julgados. 

O tema foi assunto da terceira live do dia, sobre sistema judiciário e as semelhanças e diferenças legais entre o Brasil e os EUA. Felipe Freitas, pesquisador do Núcleo de Justiça Racial da FGV, foi o convidado para a conversa.

Cena da live Vidas Negras Importam - Sistema Judiciário com Felipe Freitas - Foto: Matheus Moreira
Cena da live Vidas Negras Importam – Sistema Judiciário com Felipe Freitas – Foto: Matheus Moreira

Para Freitas, uma das diferenças legais mais significativas entre os dois países no que se refere à questão racial é a rapidez com que o caso George Floyd teve um desfecho. “É uma justiça que consegue dar respostas em uma velocidade diferente da que temos no Brasil. E isso faz toda a diferença, pois um direito que tarda tem pouca ou nenhuma efetividade na vida concreta das pessoas”, diz.

A dificuldade de visibilizar as conquistas que o movimento negro consegue na institucionalidade faz com que vejamos com muito mais destaque a Lei George Floyd do que, por exemplo, a mobilização do Jacarezinho após a ocorrência da chacina, segundo o pesquisador.

Além disso, Freitas aponta que falta inteligência e preparo da polícia e sugere que a situação seja contornada pelo melhor aparato legal. 

Em dezembro de 2020, o Conselho Federal da OAB aprovou duas iniciativas importantes para as próximas eleições da entidade: a paridade de gênero e a política de cotas raciais de 30% para pretos e pardos. Segundo Freitas, a iniciativa é relevante, mas há o risco do percentual se transformar em um teto para a presença de negros nesses conselhos.

“As políticas de cotas são sempre uma obrigação e nada mais. A pergunta seguinte que precisa ser feita é: o que as instituições farão com isso? O que a OAB vai fazer para estar a altura das mulheres e homens negros que ingressam e contribuem para o seu aprimoramento?”, conclui Freitas.

Na cultura, negros conquistaram espaço cantando suas realidades em ritmos historicamente relegados às periferias, mas que ganham, graças a internet, novos públicos de norte a sul. 

É o caso do DJ e funkeiro Rennan da Penha, um dos idealizadores do tradicional Baile da Favela, que é mencionado em muitos versos de funk, e que participou da última live do dia, conduzida pelo repórter Amon Borges. Para ele, a música abre portas.

Rennan lembra que a violência é algo pelo que ele passa há anos. “Entra ano e sai ano e nada muda […] Quem é da comunidade sabe que a gente vive em busca da paz”, afirma. “O que aconteceu com George Floyd, da abordagem agressiva, já aconteceu com amigos, aconteceu comigo. Isso só ganhou destaque depois que vimos o que aconteceu com Floyd de forma brutal”, diz o funkeiro.

Cena da live Vidas Negras Importam - Cultura com Amon Borges, Karol Conká e Rennan da Penha - Foto: Matheus Moreira/Folhapress
Cena da live Vidas Negras Importam – Cultura com Amon Borges, Karol Conká e Rennan da Penha – Foto: Matheus Moreira/Folhapress

A rapper Karol Conká diz também acreditar na arte como oportunidade para conquista de espaços por negros. Ambos os cantores, no entanto, ressaltam que, apesar de haver maior presença de negros no cenário artístico, ainda há um longo caminho a ser percorrido. 

“Nossa vivência em forma de arte é nossa arma, por assim dizer. A música, além de abrir portas, ela faz a mente chegar além do que a vista alcança. […] As redes sociais colaboram muito para isso, para ocuparmos esses espaços”, diz Karol Conká. 

“Nós sabemos muito mais sobre os brancos do que eles sabem sobre nós, os negros. Eles tentam nos moldar para aparecer na mídia, para ter empregos”, diz a curitibana. “O nosso jeito negro não cabe nesses lugares e por isso temos que falar sobre isso. Temos vivências que não estão nos livros, não são ensinadas nos colégios”, afirma a rapper, que trabalha em um novo álbum após o confinamento no BBB 21.

Texto: Matheus Moreira, Priscila Camazano, Amon Borges e Jairo Malta

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