Narloch distorce trabalho de historiadores para defender negacionismo da escravidão
O jornalista Leandro Narloch escreve em sua coluna “Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro” que “ativistas” deveriam se insipirar em sinhás pretas usando uma lógica liberal e meritocrática.
O texto sugere que os meus ancestrais, escravizados pelos ancestrais de homens brancos como o próprio Narloch, não conquistaram suas alforrias durante o período escravocrata por não terem trabalhado duro o suficiente para ter dinheiro que pagasse por sua liberdade.
Narloch lembra, com razão, que havia mulheres negras que tinham escravos, mas o faz por meio da exceção à regra.
“Ele pega as exceções, as retira do contexto e reforça a aceestrutura racista. Isso está não só no que ele diz, mas na forma como diz. O problema é ele tirar as exceções do seu lugar de exceções”, diz Ynaê Lopes dos Santos, doutora em história pela USP e especialista em história da escravidão nas Américas.
Ao sugerir que casos de mulheres negras ricas com escravos “certamente não eram raros”, o colunista deslegitima toda a história dos povos negros brasileiros e abre margem, por exemplo, para a supressão de políticas afirmativas sob a luz de uma suposta democracia racial.
“Aonde Narloch quer chegar? Ele quer deslegitimar a luta do movimento negro hoje. No limite, ele quer implodir com a política exitosa de ações afirmativas. Ele quer colocar isso em xeque do ponto de vista da legitimidade. Ele está politizando a leitura do passado para promover o embate com a luta racial hoje”, diz Petrônio Domingues, historiador, professor da UFS (Universidade Federal de Sergipe) e autor de “Protagonismo Negro em São Paulo” (ed. Sesc-SP).
As exceções às quais se apega o colunista confirmam a regra e, não somente, são tiradas de contexto por meio do trabalho de outros pesquisadores.
“Narloch utiliza uma pesquisa minha para a construção de um dos capítulos de seu livro ‘Escravos’. O livro é feito a partir do trabalho de outros pesquisadores, e Narloch seleciona [apenas] histórias que são quase exceções dentro do processo escravista no Brasil, como escravos que tinham escravos”, diz Juliana Farias, doutora em história pela USP, em participação no podcast “Humanas – Pesquisadoras em Rede”.
À Folha, Farias reiterou sua fala no podcast, “é um resumo [do que penso]”.
Professora-adjunta na UNILAB e do Programa de Mestrado em Estudos Africanos, Populações Indígenas e Culturas Negras da UNEB, além de ter pós-doutorado em História da África pela Universidade de Lisboa, Farias critica o uso das suas pesquisas por Narloch que, segundo ela, as tira de contexto “se apropriando de um trabalho de pesquisa para fins ideologicamente orientados”.
Domingues ressalta que as sinhás pretas de fato existiram, mas que não é possível dimensionar a representatividade do grupo. “O que as pesquisas comprovaram é que era um grupo minoritário. É capciosa a narrativa de Narloch porque ele tenta inverter e generalizar”, afirma.
De maneira similar, é possível notar que o trabalho do antropólogo Antonio Risério também é desvirtuado, uma vez que o próprio antropólogo reconhece que as histórias contadas em seu livro não foram suficientes para aplacar as desigualdades sociais brasileiras no período, como aponta a reportagem de João Gabriel Telles para a Ilustrada.
O argumento de que as sinhás pretas enriqueceram e assim superaram o preconceito também carece de evidência que o sustente. “Isso é puro anacronismo. Ele disse que as sinhás pretas ascendiam e eliminavam o preconceito. A mobilidade social não eliminava o preconceito. Isso é mentira”, afirma Domingues.
Já para Santos, o fato de negros terem tidos escravos não muda a história da escravidão no Brasil. Ao contrário, a reforça. Para a historiadora, Narloch analisa o movimento negro e a escravidão de forma simplista.
“Ele está fazendo isso num espaço de privilégio que ele sabe, conscientemente, que tem. O que ele faz é o uso desonesto das pesquisas científicas feitas por historiadores. Ele reduz o movimento negro ao simplismo porque é a forma como ele consegue enxergar o movimento negro. Narloch faz uso da supremacia branca e tem a ousadia de nesse lugar falar pelo movimento negro”, conclui.
Sempre haverá entre nós, negros ou brancos, aqueles que discordam, que agem de má fé ou que nem sequer se importam o bastante para pensar a respeito de qualquer coisa. Na Folha, já houve avanços na discussão sobre a complexidade dos movimentos negros ao longo da história. Faria bem a Narloch ler o jornal para o qual escreve.
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