Sobre bicicletas e vidas negras roubadas

O jornalista Janio de Freitas, a quem leio, publicou na sua coluna um texto do qual discordo fundamentalmente. O racismo, metamorfoseando o clichê de Antoine de Saint-Exupéry, também é invisível aos olhos. No entanto, a pele o sente bem.

Primeiro você não sente nada, é tudo muito rápido. Em seguida, o local fica quente, úmido, o sangue, grosso, deixa seu corpo e tinge a pele preta com o elixir da vida. E então a dor. Isso, evidentemente, se a bala não tiver deslizado pelos cabelos e atravessado o neurocrânio, responsável por proteger o cérebro. Neste caso, talvez não dê tempo de sentir nada.

O racismo é assim. Ele entra em nossos corpos num instante e, às vezes, sentimos a dor e reagimos, noutras vezes, só percebemos quando já é tarde demais.

A maior parte do racismo é essencial e estruturalmente dissimulada. Não é curioso que as balas perdidas sempre encontrem Ágatha, João Pedro, Marcus Vinicius apesar de ninguém ter gritado aos quatros ventos que iria disparar um fuzil contra uma criança negra porque ela era negra? Me pergunto se avisaram a mãe de Lucas, de 14 anos, que sumiu de sua casa e apareceu no IML, que o garoto teve sua vida roubada por ser preto.

O exercício do jornalismo nos obriga a ver por baixo do que é dito e, especialmente, o que não é dito. Usemos os dados que estão à nossa disposição para tentar analisar o entorno de maneira a entender o objeto central da análise.

Um homem negro tem 74% mais chance de ser morto do que um branco, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O levantamento feito pela Folha para a série Inocentes Presos (recomendo a leitura) mostra que, de 100 pessoas presas injustamente, 60 eram negras. Além de deixar evidente que as principais causas para as prisões são, veja só, reconhecimento incorreto (42 casos) e identificação incorreta (25 casos).

Objetivamente: o racismo é um crime cujas provas são de difícil produção porque o delito frequentemente acontece de forma velada e, além de ser velada, encontra em pessoas brancas com influência respaldo para que seja relativizado e sua ocorrência posta em dúvida.

O principal suspeito de roubar a bicicleta, um jovem branco morador de Botafogo conhecido pela polícia por justamente roubar bicicletas, foi solto. Lembra-se de Rafael Braga, preso por portar o perigosíssimo desinfetante Pinho Sol?

Por fim, devo dizer que eu concordo com Janio sobre as demissões do casal. Creio que as duas empresas perderam a excelente oportunidade de educar em vez de punir. Poderiam, por exemplo, contratar pensadores negros para um ciclo de palestras dedicados a todos os seus funcionários, incluindo o casal branco, para que o visto no vídeo e amplamente repercutido não acontecesse novamente por causa de nenhum dos seus colaboradores.

Não há respostas fáceis quando o assunto é racismo, mas podemos, juntos, construir soluções possíveis.