Casal branco do Leblon pode ser enquadrado por calúnia e racismo, avaliam especialistas

Reportagem: Rebeca Oliveira

Matheus Pereira, negro, instrutor de surf, esperava a namorada na tarde de sábado (12) em frente ao Shopping Leblon, no Rio de Janeiro, quando foi abordado por um casal branco que o acusou de roubar sua própria bicicleta elétrica. Se denunciado, o casal poderia ser enquadrado em crimes como calúnia e racismo.

O caso repercutiu rapidamente nas redes sociais. Na publicação que viralizou, Pereira diz ter tentado provar que a bicicleta era dele, com fotos antigas e a chave do cadeado. O casal só recuou na acusação depois de não ter conseguido abrir o cadeado da bicicleta com a chave que tinha. Ao notar que estava sendo filmado, o rapaz alegou que “não estava acusando, só estava perguntando”.

“São coisas que encabulam o racista. Eles não conseguem entender como você está ali sem ter roubado dele, não importa o quanto você prove”, disse Pereira.

O caso de Pereira não é isolado. Pessoas negras não raro são acusadas de furto quando aparecem publicamente com posses que, para os racistas, parecem fora de seu alcance financeiro. O ex-jogador de futebol Zé Roberto revelou em entrevista recente ao podcast PodPah que decidiu vender seu carro por ser constantemente abordado por policiais.

“Sem sacanagem, eu era parado pela polícia três vezes. Se eu não era parado, os caras [policiais] me seguiam e, quando eu chegava na porta da casa dela [de sua namorada], os caras: ‘Mão para cabeça! Sai [do carro]’! De quem é o carro?’. Isso foi muito constrangedor para mim. Isso fez com que eu vendesse o carro em três meses porque eu não tinha sossego ”, contou.

Levantamento feito pela Folha para a série Inocentes Presos mostra que das 100 pessoas presas injustamente cujo caso foi revelado pelos repórteres, 60 eram negras.

As duas principais causas para as prisões são reconhecimento incorreto (42 casos) e identificação incorreta (25 casos). Soa familiar? É porque é. O levantamento indica que negros são incorretamente reconhecidos em 71,5% dos casos contra 28,5% dos brancos.

Para o advogado voluntário do Educafro Iraupuã Santana o vídeo divulgado por Matheus revela dois crimes: calúnia e racismo. “O vídeo mostra a acusação de um furto que não ocorreu, o que constitui crime de calúnia, que é atribuir a outra pessoa um crime que não foi cometido. Mas também precisamos entender que isso somente aconteceu mediante racismo. Somente foi atribuído o crime porque o jovem em questão era negro.”

“É importante ressaltar aqui que a configuração como crime serve também para dar o devido nome a essas violências e agressões cotidianas, em especial contra jovens negros, que são reiteradamente normalizadas por uma sociedade que pensa que pode questionar o lugar, a propriedade e a liberdade de pessoas negras”, explica Thiago Amparo, advogado e colunista da Folha.

Os dois advogados avaliam que Matheus agiu corretamente em registrar o acontecido, já que a gravação se torna uma prova em eventual ação judicial. Além dos crimes de calúnia e racismo, o vídeo mostra que o casal tomou o cadeado em mãos e tentou inserir a própria chave para provar que a bicicleta era roubada.

“A tecnologia ajuda muito nesses casos de injúria racial e racismo. A situação deixa de ser a palavra de um contra outro”, diz Santana. “Além do uso em caso de ação penal, também tem um teor educativo. As pessoas têm que parar de achar que têm direito de questionar pessoas negras pela roupa que usam, pelo carro que dirigem ou por estarem perto de bicicletas elétricas.”

Segundo Amparo, o crime de calúnia pode ser denunciado somente por Matheus. Mas, caso haja o entendimento de que o caso se trata de uma ofensa ao grupo de pessoas negras como um todo, o Ministério Público pode entrar com ação penal contra o casal.

Identificado como Tomás Oliveira, o jovem branco no vídeo que acusa Pereira de roubar a bicicleta foi demitido pela Papel Craft, empresa em que trabalhava. Nas redes sociais, a empresa respondeu a comentários sinalizando o desligamento de Oliveira do quadro de funcionários. A Papel Craft disse à Folha que não se posicionaria sobre o assunto por enquanto.

Mariana Spinelli, professora do estúdio de dança Espaço Vibre e que aparece no vídeo com Oliveira, também foi demitida. Em publicação nas redes sociais a empresa disse não compactuar com racismo. “Repudiamos veementemente toda forma de discriminação e reafirmamos que o Vibre é um espaço que pratica e preza pelo respeito e pela inclusão”, diz o comunicado.

A reportagem não conseguiu contato com Oliveira ou Spinelli.

Colaborou: Matheus Moreira