Nossa vivência em forma de arte é nossa arma, diz Karol Conká

Um ano após morte de George Floyd, convidados para lives na Folha avaliam que apesar de avanços no combate ao racismo ainda há um longo caminho pela frente

 

A cada 23 minutos um jovem negro morre violentamente no Brasil. Essa frase não é nova, mas resume a realidade dos jovens brasileiros. 

Nesta terça (25), data em que há um ano George Floyd, um homem negro, foi assassinado nos EUA por um policial branco, Derek Chauvin, a Folha realizou uma série com quatro lives com o mote Vidas Negras Importam. O objetivo era analisar como o caso Floyd, que ganhou o mundo e gerou protestos concomitantes em quase 50 países, impactou o Brasil, país de luta e resistência negras que só começam a ser reconhecidas pela imprensa na última década.

O primeiro bate-papo, cujo tema foi sistema penitenciário, foi conduzido pelo repórter Jairo Malta. Um dos temas recorrentes quando o assunto é o aprisionamento é a ressocialização das pessoas privadas de liberdade após o cumprimento da pena. 

“Até tem trabalho para fazer lá dentro [da prisão]. Costurar uma bola, fazer um artesanato, mas quando o preso sai, que emprego ele vai ter? Vai costurar bola?”, questiona o rapper Christian de Souza Augusto, conhecido como Afro-X, que participou do debate. 

Cena da live Vidas Negras Importam - Sistema Penitenciário com Jairo Malta, Afro-X e Preto Zezé - Foto: Matheus Moreira
Cena da live Vidas Negras Importam – Sistema Penitenciário com Jairo Malta, Afro-X e Preto Zezé – Foto: Matheus Moreira

Afro-X parte da sua própria experiência no sistema prisional para analisar como a ressocialização nos moldes atuais se traduz na prática.

“Pulam-se os passos para uma sociedade democrática, que é trabalhar os requisitos básicos que estão na nossa Constituição, como direito à moradia, direito a oportunidades e outros requisitos. Quando você não assegura esses direitos, é muito difícil de se falar em ressocialização”, argumentou o rapper. “Se a socialização não funciona, a ressocialização será repleta de iniciativas tímidas, ainda que sejam relevantes”.

A música foi o ombro amigo do rapper durante o encarceramento, ocasião em que nasceu o 509-E. “Prova viva que, mesmo diante de uma estatística, é possível recuperar as pessoas”. 

A dupla com o rapper Dexter foi formada no início dos anos 2000, no presídio do Carandiru, como parte de um movimento que nasceu dentro da prisão para reivindicar os direitos dos detentos e o nome 509-E marca o registro da cela em que estavam presos.

o empresário e presidente da Cufa (Central Única das Favelas), Preto Zezé, que também participou da live, ressalta outro aspecto, este que corre paralelamente ao encarceramento. Para ele, o foco em repressão e policiamento ostensivo por parte dos agentes de segurança pública é um dos motivos pelos quais tantos jovens negros morrem em decorrência de operações policiais.

 “Não são só os criminosos que morrem, o Brasil é um dos países que mais mata policiais também. Todos perdem nessa guerra“, afirma.

A situação é complexa, em especial quando considerado o caráter estrutural do racismo no Brasil, que atinge também a imprensa, por exemplo. 

Para a jornalista, doutora em comunicação e professora universitária Rosane Borges, a cobertura do assassinato de George Floyd pelos jornais brasileiros foi errática. Ela aponta que ao mesmo tempo em que os jornais trataram o caso como consequência de racismo estrutural e policial, também individualizaram as responsabilidades pelo ocorrido. “Ora, a imprensa tem que se decidir, ou é culpa da banda podre [da polícia] ou é consequência do racismo estrutural”, disse. Isso se repete, ainda segundo ela, com os casos brasileiros como o de Beto Freitas, morto por um segurança do supermercado Carrefour em 20 de novembro de 2020, em Porto Alegre. 

Borges participou da segunda live do dia, sobre mídia e comunicação. De acordo com a comunicóloga, não é difícil observar mudanças na atuação dos principais jornais do país, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido.

Na GloboNews, por exemplo, um time de repórteres e apresentadores negros de peso ocupou a tela das televisões brasileiras após críticas do público a um programa em que a pauta era racismo cujo convidados eram todos brancos. Para Borges, apesar da presença negra ter apresentado uma explosão nas semanas que se seguiram a morte de Floyd, o momento passou e a presença negra arrefeceu. 

Diferente da imprensa americana, a brasileira não dá nome às situações que envolvem racismo e pessoas negras, na avaliação de Yasmin Santos, jornalista e editora-assistente do Nexo Jornal. 

“A imprensa americana dá nomes às coisas. A imprensa brasileira usa indicadores sociais como ‘homem negro’ para os EUA, mas e o Brarsil? No mesmo mês da morte de Floyd tivemos João Pedro, que só ganhou destaque depois da morte de Floyd. Nós não temos casos no Brasil? A taxa de letalidade policial no nosso país é muito superior a dos EUA. Em 2019, a polícia brasileira matou 17x mais que a americana.” 

Mas afinal, o que há de diferente na morte de Floyd que causou comoção e levou quase 50 países a registrarem protestos do Black Lives Matter? 

Para Manoel Soares, jornalista, apresentador do É de Casa na TV Globo e cofundador da Cufa (Central Única das Favelas), uma das possibilidades é a brutalidade. “Quando pessoas que estão acreditando na sua humanização veem uma pessoa parecida com elas sendo abatida como um animal, isso gera a comoção que vimos. Não conseguimos respirar junto com Floyd. O sufocamento, a chicotada do meu ancestral, foi passada geneticamente para mim”, disse. 

O apresentador sugere que a morte de Floyd comoveu também tantas pessoas brancas ao redor do mundo porque “quando o branco viu de maneira explicita a crueldade quase instantanea praticada por alguém que parecia com eles [contra um homem negro], o povo branco viu a selvageria que recai sobre nós. Eles olharam para o monstro e viram que se parece com seus tios, avós, irmãos”.

A morte de Floyd parece ter sido um novo estopim para novas mudanças há tanto tempo exigidas pelas populações negras americana e brasileira. No ambito legal, por exemplo, a condenação de Derek Chauvin, ainda sem sentença, pelo assassinato de Floyd pode mudar a maneira como casos similares serão julgados. 

O tema foi assunto da terceira live do dia, sobre sistema judiciário e as semelhanças e diferenças legais entre o Brasil e os EUA. Felipe Freitas, pesquisador do Núcleo de Justiça Racial da FGV, foi o convidado para a conversa.

Cena da live Vidas Negras Importam - Sistema Judiciário com Felipe Freitas - Foto: Matheus Moreira
Cena da live Vidas Negras Importam – Sistema Judiciário com Felipe Freitas – Foto: Matheus Moreira

Para Freitas, uma das diferenças legais mais significativas entre os dois países no que se refere à questão racial é a rapidez com que o caso George Floyd teve um desfecho. “É uma justiça que consegue dar respostas em uma velocidade diferente da que temos no Brasil. E isso faz toda a diferença, pois um direito que tarda tem pouca ou nenhuma efetividade na vida concreta das pessoas”, diz.

A dificuldade de visibilizar as conquistas que o movimento negro consegue na institucionalidade faz com que vejamos com muito mais destaque a Lei George Floyd do que, por exemplo, a mobilização do Jacarezinho após a ocorrência da chacina, segundo o pesquisador.

Além disso, Freitas aponta que falta inteligência e preparo da polícia e sugere que a situação seja contornada pelo melhor aparato legal. 

Em dezembro de 2020, o Conselho Federal da OAB aprovou duas iniciativas importantes para as próximas eleições da entidade: a paridade de gênero e a política de cotas raciais de 30% para pretos e pardos. Segundo Freitas, a iniciativa é relevante, mas há o risco do percentual se transformar em um teto para a presença de negros nesses conselhos.

“As políticas de cotas são sempre uma obrigação e nada mais. A pergunta seguinte que precisa ser feita é: o que as instituições farão com isso? O que a OAB vai fazer para estar a altura das mulheres e homens negros que ingressam e contribuem para o seu aprimoramento?”, conclui Freitas.

Na cultura, negros conquistaram espaço cantando suas realidades em ritmos historicamente relegados às periferias, mas que ganham, graças a internet, novos públicos de norte a sul. 

É o caso do DJ e funkeiro Rennan da Penha, um dos idealizadores do tradicional Baile da Favela, que é mencionado em muitos versos de funk, e que participou da última live do dia, conduzida pelo repórter Amon Borges. Para ele, a música abre portas.

Rennan lembra que a violência é algo pelo que ele passa há anos. “Entra ano e sai ano e nada muda […] Quem é da comunidade sabe que a gente vive em busca da paz”, afirma. “O que aconteceu com George Floyd, da abordagem agressiva, já aconteceu com amigos, aconteceu comigo. Isso só ganhou destaque depois que vimos o que aconteceu com Floyd de forma brutal”, diz o funkeiro.

Cena da live Vidas Negras Importam - Cultura com Amon Borges, Karol Conká e Rennan da Penha - Foto: Matheus Moreira/Folhapress
Cena da live Vidas Negras Importam – Cultura com Amon Borges, Karol Conká e Rennan da Penha – Foto: Matheus Moreira/Folhapress

A rapper Karol Conká diz também acreditar na arte como oportunidade para conquista de espaços por negros. Ambos os cantores, no entanto, ressaltam que, apesar de haver maior presença de negros no cenário artístico, ainda há um longo caminho a ser percorrido. 

“Nossa vivência em forma de arte é nossa arma, por assim dizer. A música, além de abrir portas, ela faz a mente chegar além do que a vista alcança. […] As redes sociais colaboram muito para isso, para ocuparmos esses espaços”, diz Karol Conká. 

“Nós sabemos muito mais sobre os brancos do que eles sabem sobre nós, os negros. Eles tentam nos moldar para aparecer na mídia, para ter empregos”, diz a curitibana. “O nosso jeito negro não cabe nesses lugares e por isso temos que falar sobre isso. Temos vivências que não estão nos livros, não são ensinadas nos colégios”, afirma a rapper, que trabalha em um novo álbum após o confinamento no BBB 21.

Texto: Matheus Moreira, Priscila Camazano, Amon Borges e Jairo Malta